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O exercício da cidadania através da comunicação comunitária

Atualizado: 3 de ago. de 2021

Cicília Peruzzo debate a ampliação dos direitos das minorias através da mídia popular e alternativa

(Coletivos na Av. Paulitsta - SP l Foto: Jaqueline Suarez)


Por Pâmela Dias


A comunicação popular, comunitária e alternativa se tornou um espaço de luta por direitos, visibilidade e igualdade na América Latina. Desde a década de 1980, grandes estudiosos, como Cicília Peruzzo, pesquisadora e docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi, investigam a ampliação do exercício da cidadania através das mídias populares. Dentre as etapas de análise, a pesquisadora compreende que o objetivo central das pesquisas voltou-se para o estudo da plural representação das minorias nas mídias comunitárias, bem como o processo de exclusão social praticado pela mídia hegemônica.


Adepta a uma concepção menos engessada dos conceitos de comunicação comunitária, independente e popular e defensora do termo “contra-comunicação”, Peruzzo ressalta em seus debates a necessidade de enxergar cada iniciativa como uma fonte ampliadora de direitos. Segundo a pesquisadora, dessa forma é possível englobar as inúmeras e distintas realidades sociais, e não apenas aceitar os significados pré-estabelecidos. Quanto à contra-comunicação, ela entende que o termo vai de encontro às mídias alternativas no momento em que estabelece um diálogo não hegemônico, mas sem necessariamente fazer questionamentos ao grande sistema.


Levando em consideração as realidades e mobilizações sociais latino-americanas dos últimos anos, a Comunicação em Movimento conversou com Cicilia Peruzzo, que hoje também atua como coordenadora do Núcleo de Estudos de Comunicação Comunitária e Local (COMUNI) e também do Grupo de Trabalho Comunicação e Cidadania da Associação Brasileira de Programas de Pós-Graduação em Comunicação (Compós), sobre sua trajetória de pesquisa na comunicação; o papel social da Internet como disseminadora tanto de discursos democráticos quanto de fake news; além das consequências negativas trazidas à comunicação alternativa pelos governos autoritários.


(Cecilia Peruzzo l Foto: Adriana Silva)


Comunicação em Movimento: Você trabalha há muitos anos com temas relacionados à comunicação cidadã, especialmente, sobre comunicação alternativa, popular e comunitária. Eu gostaria que você fizesse um balanço da sua contribuição na área, seja através da pesquisa ou da sua atuação enquanto comunicadora.


Peruzzo: Eu tentei, ao longo do tempo, continuar pesquisando o tema que pesquiso desde o doutorado, que defendi em 1991 e que sempre gostei. Então procurei mapear como esses processos da comunicação popular, comunitária e alternativa foram se desenvolvendo. No meu ponto de vista, a sociedade vai se modificando junto com a comunicação. Por exemplo, em relação a um passo da comunicação popular da década de 1980; depois de 1990, quando os processos são mais claros enquanto comunicação comunitária; como que a comunicação alternativa, principalmente o jornalismo alternativo, no contexto da ditadura militar, foi se modificando e assumindo outras formas de mídias alternativas no contexto dos movimentos sociais, das ONGs e outras organizações sem fins lucrativos.


Comunicação em Movimento: Muito se fala sobre as possibilidades trazidas pela internet, especialmente para as iniciativas que atuam fora da rede comercial/corporativa. Mas há também outro lado: acesso desigual, desinformação, ação de robôs e as limitações dos algoritmos. Poderia comentar sobre as possibilidades e desafios enfrentados por esses projetos para existir e ser visto na rede.


Peruzzo: Esse é um tema muito importante e muito complicado. Por um lado, a internet com as mídias e redes sociais-digitais facilita muito a comunicação dos movimentos sociais e das demais organizações civis sem fins lucrativos. Mas por outro lado, seu uso tem seus limites, contradições e malefícios, como a ação de robôs e as fake news, que interferem negativamente na sociedade. Há vários pontos didáticos que podem ser discutidos, mas poderia dizer que, do ponto de vista dos movimentos sociais, há uma presença interessante e crescente nas mídias e redes sociais digitais.


No entanto, não podemos colocar, como às vezes há uma tendência, que tudo que se refere à comunicação nos movimentos sociais passe pelas redes e mídias. Acho que tem muitos processos que ainda implicam na comunicação face-a-face, implicam nos meios tradicionais.

Peruzzo: Temos que relativizar, porque quem está muito de fora dos movimentos sociais chega com essa visão de que hoje tudo é rede social-digital e acha que também é assim no contexto dos movimentos sociais, mas não é. Precisamos realmente compreender cada movimento em sua especificidade, nas suas necessidades de comunicação e, acima de tudo, pensar a comunicação dos movimentos a partir de seu contexto.


Comunicação em Movimento: Em termos de políticas públicas, o que representa o governo de Jair Bolsonaro para essas iniciativas, especialmente para os meios comunitários (incluindo a radiofusão e a TV)?


Peruzzo: A gente não pode esperar muito desse governo de contribuição e favorecimento dos meios e canais de comunicação, como também não podíamos esperar de muitos governos anteriores que se diziam progressistas e foram os que mais fecharam rádios comunitárias. Acredito que a esperança vem da força da sociedade civil, das organizações de base e das organizações sociais de tomarem a frente e levar adiante esse processo de comunicacional, porque se esperar o Estado as condições favoráveis não chegarão.


(Coletivos na Av. Paulista - SP l Foto: Jaqueline Suarez)


Comunicação em Movimento: Você tem um artigo que discute a aplicação das ideias de Paulo Freire na comunicação popular e comunitária. De forma ampla, o que as iniciativas alternativas à mídia hegemônica poderiam aprender com Freire?


Peruzzo: Muitos já colocam em prática os ensinamentos de Freire no sentido de estabelecer diálogo, de dar voz àqueles que não têm. E aí eu acrescento não dar voz somente, mas dar a vez, fazer participar dos projetos de comunicação para além do poder de fala. Acredito que deve ter participação difundindo os conteúdos também. Então Freire está muito presente no sentido da comunicação, do respeito ao outro e da autonomia.


Comunicação em Movimento: Você tem alguns trabalhos que discutem os conceitos de comunicação alternativa, popular e comunitária. Outros pesquisadores também adentram esse campo de tentar buscar uma definição. Existem alguns coletivos de favelas aqui no Rio de Janeiro que se afirmam enquanto comunicação comunitária, mas também mídia independente. Ou seja, dois conceitos. Você acha que hoje está mais difícil de definir e identificar um perfil ou origem (conceito) para esses projetos?


A gente não pode ter conceitos muito fechados para caracterizar esses processos porque a realidade é complexa e ela não cabe em conceitos. Então, na medida em que se fecha o conceito, ele não dá conta da realidade.

Peruzzo: O importante é conhecer bem cada experiência e ver nela o que está se dando, se tem um caráter mais independente, mais comunitarista ou mais alternativo. Mas com certeza todas essas iniciativas são válidas, porque mostram pessoas, grupos e coletivos se empoderando de processos de comunicação em uma perspectiva cidadã, que é o que nos interessa. O que queremos no final não é ampliar os direitos de cidadania? Então temos os deveres enquanto pessoas atuantes para transformar essa realidade e usar a comunicação enquanto meio e fim de um processo de mudança, em prol do desenvolvimento da cidadania. Devemos seguir todos, cada um em seu contexto e realidade, fazendo essa outra comunicação, mas sempre pensando em um bem comum.


Comunicação em Movimento: A comunicação alternativa, popular, comunitária é sempre contra-hegemônica? Existem outras táticas ou práticas para além da contra-informação?


Peruzzo: Para além do que a gente pensa como mídia, existem muitas práticas de comunicação e formas de expressão. As manifestações públicas, a marcha das mulheres e a marcha das mulheres indígenas, por exemplo. Tudo é comunicação, não só na manifestação em si, no dia que culmina, mas todo o processo de organização durante o ano para que o evento aconteça. Então, falar em comunicação é falar em mobilização neste sentido mais amplo, com capacidade de organização social voltada para o futuro e não simplesmente na preparação do evento. A comunicação perpassa todos esses processos.


Já o conceito de contra-hegemônico é muito complexo, a gente precisa estudar mais. Contra-comunicação é um conceito mais tranquilo de se usar, pois é uma outra comunicação que está se contrapondo. Mas, muitas dessas experiências não chegam a questionar o grande sistema.


Temos um conceito de contra-hegemonia que, no meu ponto de vista, temos que ter cuidado na hora de aplicar, pois não vejo todas essas experiências como contra-hegemônica, mas podem ser uma forma de contra-comunicação.

(Marcha das Mulheres, Rio e Janeiro - RJ l Foto: Anna Castro)


Comunicação em Movimento: A ausência de recursos e os riscos à segurança são dois problemas que dialogam e que são cotidianamente experimentados por projetos de comunicação comunitária ou popular. O que se pode fazer para driblar ou ao menos minimizar esses riscos? O que você tem observado em campo enquanto experiência nesse sentido?


Peruzzo: Isso passaria por dois processos. Um deles é o não esquecimento da participação efetiva com poder de decisão da população local ou dos membros de uma comunidade, porque ele (o movimento) não precisa ser apenas territorial. O segundo processo é a não desvinculação dos movimentos comunitários, sociais e associativos, porque, às vezes, quando se cria um meio comunitário, ele se isola e esquece que é fruto de um movimento social local e, às vezes, comunitário. Quando uma rádio comunitária se isola, por exemplo, muito do processo que a gerou é perdido e acaba reproduzindo programações que já passam nas rádios comerciais. Isso dificulta um trabalho diferenciado nas próprias comunidades. Acredito que esses meios devem se autorreconhecer enquanto 'meios comunitaristas' e realmente colocar em prática tudo isso.


Comunicação em Movimento: Em todo o globo e especialmente na América Latina, vemos a queda sucessiva de governos progressistas, nos últimos anos. O que isso impacta na comunicação não hegemônica e qual é o papel dessa comunicação frente a onda conservadora?


Peruzzo: Impacta bastante porque mexe com as nossas mentalidades. Em alguns casos gera insegurança que quando divulgada pode gerar processos de políticas públicas que contribuam com recursos. Temos como exemplo o projeto Cultura Viva, que foi a grande descoberta de uma política pública de favorecimento às iniciativas comunitárias locais. Mas por outro lado, felizmente, a sociedade civil é dinâmica e viva, e essas organizações não dependem somente dessas forças que estão no exercício do poder. Então, isso é um sinal de esperança.


A sociedade civil segue atuante e sabe dar a volta por cima, porque entende também quais as necessidades da sua realidade e das comunidades no contexto muito concreto das vidas cotidianas.


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