Carnaval e representatividade feminina: sobre o que estamos falando?
- Emerge UFF
- 29 de mai.
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Por: Carolina Grimião - Jornalista, Historiadora, Psicopedagoga, Mestra e Doutoranda em Mídia e Cotidiano pelo PPGMC / UFF
Nascido nas casas das tias baianas, o samba existe graças à força de mulheres negras que o abrigou. Em um tempo onde a “vagabundagem” era crime, uma roda de pretos realizando seus batuques não era vista com bons olhos. Em um contexto de pós-abolição e início do século 20, é nos quintais nos fundos das casas, onde também se fazia a resistência religiosa dos cultos africanos, que o samba nasce enquanto gênero musical que, mais tarde, se tornará um símbolo da cultura deste país.
Mas falando sobre as tias baianas, muito do que conhecemos das histórias e dos registros da cultura afro-brasileira vêm delas. Mulheres, matriarcas, líderes e conselheiras. Suas casas eram abrigos seguros e locais fundamentais de resistência de um povo. Respeitadas, ditavam as regras e organizavam os encontros e reuniões religiosas do candomblé que sempre terminavam em batucadas do samba.
Compositores e sambistas são homens. Eles registraram em cartório o primeiro samba gravado, criaram novos instrumentos de percussão e tomaram a frente de diversos movimentos políticos e sociais para a legitimação de uma manifestação cultural que já dominava a cidade do Rio de Janeiro. Mas não sem a presença delas. Muitas vezes em lugar de suporte, eram as damas do samba que seguravam muitos dos problemas enfrentados por eles. Afinal, o que seria do grande compositor e líder mangueirense Cartola se não fosse Dona Zica?
Esse lugar de “rede de apoio” sempre foi presente para a sustentação do samba e, consequentemente, das escolas de samba. As mulheres possuem os seus espaços nas alas das baianas, na ala de passistas e como portas-bandeiras. Outros quesitos como Comissão de Frente e Bateria, por exemplo, eram exclusivamente masculinos, com raras exceções como Dagmar, que foi pioneira em tocar o surdo de marcação, instrumento fundamental de qualquer bateria, na Portela em 1938.
Marcos como esse se tornaram pontuais em alguns momentos da história, mas fundamentais para a representatividade da força feminina no samba além das cozinhas, dos terreiros e suportes emocionais de seus cavalheiros. Dona Ivone Lara foi a primeira mulher compositora a assinar um samba-enredo na década de 1960 pelo Império Serrano. E assim, outros nomes foram aparecendo em outros segmentos e abrindo caminhos para as mulheres em outras funções.
Seja nas administrações ou nas artes, o fato é que ainda hoje a mulher sambista enfrenta os resultados de uma sociedade que, ainda que ela tenha ajudado a construir, sobram poucos papéis de destaque nas áreas que pensam, organizam e conduzem as agremiações enquanto instituições culturais, políticas, geográficas, históricas e estruturais especialmente para o Rio de Janeiro.
É bem verdade que hoje é possível encontrar mulheres na presidência das escolas e que, embora poucas ocupem esse espaço, ainda lidam com o fardo de precisar, constantemente, reafirmar o lugar que conquistaram. Seja com Guanayra Firmino, primeira presidente eleita na Estação Primeira de Mangueira, com mandato iniciado em 2022; Regina Céli, presidente campeã com o Acadêmicos do Salgueiro em 2009; ou a jovem Lara Mara, de apenas 20 anos, eleita como a presidente mais jovem na atualidade, pela Unidos de Padre Miguel. Todas enfrentam diversos desafios por ocupar um posto tão importante na condução de tanta gente. Seus nomes são muitas vezes envolvidos em polêmicas questionáveis por serem “autoritárias ou difíceis demais”.
Se olharmos no campo das artes, na posição de quem cria os desfiles, tivemos pouquíssimas carnavalescas mulheres ao longo da história. Surgida da Escola de Belas Artes nos anos 1970, a revolucionária Rosa Magalhães serviu de inspiração e base para muitos outros artistas. Márcia Lage e Lícia Lacerda foram outros nomes de destaque. Porém, o não surgimento de outras mulheres confere hoje à Annik Salmon, única mulher carnavalesca em atividade em todo carnaval do Rio de Janeiro, tal representatividade.
E o que dizer de Elza Soares encarando o desafio de cantar no carro de som do Salgueiro na década de 1960? Até hoje diversas cantoras e intérpretes lutam por reconhecimento musical nos microfones da folia. A maioria ainda fica como voz de apoio aos intérpretes masculinos e enfrentam desafios diversos na relação profissional. Você conhece alguma “puxadora” mulher no carnaval carioca?
No campo das comunicações, a entrada feminina nos meios profissionais ainda é mais apertada, ficando mais aceita nas assessorias de imprensa e em alguns veículos da imprensa especializada enquanto repórteres. Até mesmo fotógrafas mulheres são poucas, fazendo com que os créditos dos registros dos desfiles, em sua grande maioria, seja apenas sob os olhares masculinos.
Em uma perspectiva histórica, aqui apresentada bem brevemente, a imprensa de carnaval vem com os cronistas, representantes dos jornais que retratavam o Rio e seus cotidianos nos periódicos entre o final do século 19 e meados do século 20. E até hoje, de alguma forma, o impacto da história acompanha as vozes femininas que tentam ter suas opiniões e argumentos validados por um grupo tão restrito de profissionais do meio carnavalesco. Afinal, “mulher não sabe falar de samba”.
Seguindo um legado de nomes importantes como o de Eneida de Moraes, tida como vanguardista aos seus contemporâneos por ser a primeira autora mulher a escrever as manifestações carnavalescas, “História do Carnaval Carioca”, de 1958, identifica características do carnaval brasileiro, definindo conceitos de cordões, corsos, ranchos, sociedades e entrudos, trazendo um certo academicismo ao popular. Ainda assim, poucas mulheres hoje se dedicam a estudar, pesquisar e analisar o Carnaval.
É claro que esta discussão se estende em muitas possibilidades. Afinal, quando falamos de representatividade feminina no samba e no carnaval podemos nos encaminhar para inúmeros pontos de vistas distintos, bem como fatores de idade, cor de pele, condição social e lugar de atuação. Mas uma coisa ainda se faz muito presente: o quanto as vozes femininas no samba ainda carecem de espaço e visibilidade.
Se muito já se conquistou, ainda é muito pouco perto do que precisa ser conquistado. Seja para dar uma opinião, para se fazer ouvir ou para impor respeito, o samba nasce do matriarcado dos seus fundamentos, mas se sustenta no patriarcado da sociedade em que vive. Também é preciso pensar sobre isso.
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