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Ciência em suspensão: Fragilidades epistêmicas na sociedade de plataforma

Por: Andressa Garcez


O avanço das plataformas digitais no cerne das práticas sociais contemporâneas não apenas remodelou os circuitos de comunicação e sociabilidade, mas tensionou de modo radical a própria noção de verdade como categoria de valor público. No Brasil, esse tensionamento manifesta-se com particular intensidade no campo científico, onde a crise epistêmica opera como espelho da plataformização da vida cotidiana. Ao produzir lógicas de pertencimento baseadas em algoritmos de segmentação e afetividade, o ambiente digital institui uma espécie de gramática do real, reconfigurando os modos pelos quais o saber é consumido, compartilhado e, sobretudo, acreditado.


Trata-se de uma reorganização que não pode ser considerada neutra, tampouco acidental. O que se observa é a colonização da epistemologia por infraestruturas técnico-econômicas que transformam a produção científica em mais uma mercadoria sujeita à lógica da performance. A dinâmica de visibilidade, engajamento e aceleração imposta pelas plataformas impõe à ciência o ritmo da indústria cultural e dos mercados informacionais. Como resultado, o saber passa a ser modelado menos por seus métodos do que por sua capacidade de circular, tocar ou converter. O que não influencia, não existe. A dissolução progressiva da mediação crítica — que historicamente sustentou a autoridade do saber científico — é acelerada por um processo de imediação que funde a experiência sensível do cotidiano ao espetáculo algorítmico das redes (Bolter; Grusin, 2000). A transparência ilusória das plataformas, que apagam sua própria arquitetura de poder em nome de uma pretensa neutralidade, favorece a emergência de identidades informacionais moldadas por bolhas desinformativas movidas pelo afeto e discursos de confirmação. O conhecimento, portanto, torna-se menos um resultado da pesquisa do que um elemento da performance identitária, apropriado seletivamente conforme o desejo de pertencimento de sujeitos cada vez mais imersos em ecossistemas de autoafirmação digital.


A ciência, pressionada por esse ambiente hostil, vê-se compelida a responder não apenas à desinformação, mas a um novo regime de verdade, em que a autoridade é substituída pela viralidade e a evidência pela pseudoautoridade (Rieh, 2010). O negacionismo científico, longe de ser um desvio irracional, surge como forma organizada de expressão subjetiva, enraizada na alienação cotidiana de sujeitos que, esvaziados da mediação coletiva, buscam em figuras eloquentes a legitimação de seus afetos e ressentimentos. Como na pandemia de Covid-19, em que o cenário de dúvida e medo potencializou a aderência a conteúdos nocivos, ao estabelecer um teatro de disputas simbólicas em torno da legitimidade da ciência, agora submetida à gramática da suspeita constante. Logo, o cotidiano se converte em um campo de batalha epistêmica. Nas interações mais banais, o sujeito atravessa dinâmicas de plataformização que moldam suas práticas informacionais, seus vínculos afetivos e suas posições ideológicas. A repetição constante de conteúdos dentro de circuitos fechados de validação emocional consolida uma ecologia de crença que opera com eficiência brutal: seleciona, distribui, mas também reforça. A interface torna-se operadora de mundo. O algoritmo, seu editor silencioso. E a desinformação deixa de ser um ruído para tornar-se infraestrutura simbólica, produto refinado de um sistema que lucra com a dissolução da confiança.


Há de se considerar uma histórica fragilidade das políticas públicas de ciência e tecnologia no Brasil, bem como a ausência de uma regulação robusta que enfrente os monopólios informacionais. A retirada de ferramentas de checagem, a limitação do acesso a dados e a precarização da pesquisa pública configuram não apenas sintomas de um tempo, mas estratégias deliberadas de captura do saber. E para além de seus conteúdos, o conhecimento científico passa a ser ameaçado em sua própria condição de existência, onde a ciência torna-se suspensa: entre o desejo de ser compreendida e a impossibilidade de disputar, em igualdade, os códigos do mundo digital.


Mais do que um sintoma evidente, é urgente resgatar a ciência como prática crítica e comprometida com a complexidade da experiência humana. Exigirá mais do que a defesa institucional ou campanhas de divulgação. Implica em reconhecer que a disputa pelo saber é também disputa por formas de vida, por modelos de pertencimento e por linguagens que resistam à lógica do aplauso fácil e da confirmação imediata. O combate à desinformação não se dá apenas pelo esclarecimento, mas pela construção de sentidos que devolvam à pesquisa seu vínculo ético com o mundo. Num tempo em que a verdade é mercadoria e o algoritmo, seu condutor, pensar a ciência é também pensar o futuro da democracia.




BOLTER, Jay David; GRUSIN, Richard. Remediation: understanding new media. Cambridge: The MIT Press, 2000.


RIEH, Soo Young. Credibility and Cognitive Authority of Information. Encyclopedia of Library and Information Sciences, v. 1, n. 1, 2010. Disponível em <http://hdl.handle.net/2027.42/106416>. Acesso em: 10 ago. 2024.

 
 
 

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