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Denúncias virtuais reacendem debates sobre a lei de cotas nas universidades brasileiras

Atualizado: 8 de jul. de 2020

De 2012 a 2018, o número de alunos negros em universidades públicas aumentou 158%, mas fraudes podem invisibilizar relevância da política



Por Lucas Bulhões e Pâmela Dias


A atual pandemia da Covid-19 vem sendo a pauta dominante dos debates globais há pelo menos seis meses. Contudo, no dia 25 de maio, após um policial branco assassinar brutalmente George Floyd, um homem negro, durante uma abordagem policial, as discussões étnico-raciais ganharam força por todo mundo e geraram uma série de manifestações. Violência policial, racismo, empoderamento e valorização das vidas negras foram alguns dos assuntos que se ramificaram deste caso e ganharam destaque. No entanto, no Brasil, os holofotes também se voltaram para a polêmica questão da fraude de cotas.


Nas redes sociais, com maior concentração no Twitter, os debates raciais acabaram gerando uma onda de perfis dispostos a expor pessoas que haviam fraudado a Lei de Cotas nas universidades públicas do país. A partir do dia 04 de junho, esses perfis ganharam força e serviram como espaços para denúncias anônimas. Quaisquer interessados poderiam delatar um infrator, enviando dados como nome, curso, instituição de ensino e um comprovante da categoria da cota em que a matrícula havia sido feita, além de uma foto do aluno.


Todos os perfis funcionavam de forma anônima e, até o momento, não tiveram seus criadores revelados. O mais seguido, o perfil @fraudadoresdecota, chegou a acumular mais de 10 mil seguidores, mas foi apagado após a grande repercussão. Ainda é possível encontrar diversas contas como essa, segmentadas por estados ou universidades - ainda que não tenham conseguido a mesma atenção.


Contas associadas ao movimento “Fraudadores de cotas” no Twitter, que tiveram o maior número de denúncias de fraudes no Brasil │ Imagem: Print da página


Mesmo com tamanha repercussão, muitos comentários questionavam a real eficácia de movimentos como esse, visto que a exposição não necessariamente seria entendida como uma denúncia formal às universidades. Segundo Denise Góes, assistente social e ativista do Movimento Negro Unificado (MNU), o fervor pelas denúncias vem justamente da falta de tato das universidades tratarem as fraudes.


Todo movimento externo e espontâneo de reivindicação faz parte da luta de classes, se a sociedade se omite e no caso as universidades, não dão respostas eficazes a um processo vergonhoso de fraudes, as ações subsequentes acontecem no sentido de balançar as estruturas. A exposição traz à tona o problema, alimenta o debate e exige soluções comenta Denise.


Há também a dificuldade na demarcação de fatores que tornem os indivíduos aptos ou não a receber as cotas ligadas a raça e etnia, por conta de fatores históricos na formação social do país. Mas, quanto a isso, Góes afirma:


— O único parâmetro é o fenótipo, não sendo levado em consideração a ascendência, já que no Brasil o racismo é de marca, está nos traços que carrega e de como é visto socialmente. Então, seus cabelos, olhos, boca, nariz e tom da pele são os elementos analisados.


— Utilizar essas ações afirmativas é ocupar um espaço que antes não era comum às pessoas negras — Dagles Sartori, estudante de medicina na UFF

Para Dagles Sartori, de 22 anos, estudante negro do oitavo período de medicina na Universidade Federal Fluminense (UFF), é necessário entender o contexto do racismo no Brasil, compreender as cotas como processo de justiça social e mobilizar a população para o entendimento de que o fraudador retira a oportunidade de uma pessoa negra mudar a sua realidade socioeconômica.


As pessoas não veem a importância na vida daqueles que merecem a vaga. Utilizar essas ações afirmativas é ocupar um espaço que antes não era comum às pessoas negras, visto que, no meu caso, o curso de medicina é e sempre foi composto por pessoas brancas, basicamente. Mudar essa realidade para várias pessoas é importante. Para mim, a exposição acabou servindo como uma ferramenta para que outras pessoas fiquem com medo de serem expostas disse o estudante.


Dagles Sartori, 22 anos, estudante de medicina na UFF │ Foto: Dagles Sartori


Em entrevista ao Comunicação em Movimento, o estudante contou que, em 2016, ano em que prestou a prova do Enem, ele não conseguiu ingressar no curso de medicina na categoria L2 - ação afirmativa destinada a candidatos autodeclarados pretos, pardos ou indígenas, com renda familiar bruta per capita igual ou inferior a 1,5 salário mínimo e que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas (Lei nº 12.711/2012) - pois uma pessoa que não se enquadrava nas regras, fraudou a cota.


Não entrei na UFF no primeiro semestre de 2016 porque uma pessoa fraudadora entrou pela mesma cota que eu e, se isso não tivesse ocorrido, eu seria o próximo da lista de espera. Diante disso, meu segundo ano de cursinho não foi dos melhores na minha vida porque eu me vi numa situação de um indivíduo que não merecia ou deveria usar aquela vaga.


De acordo com levantamento de dados realizados pelo O Globo, com base no Censo da Educação Superior 2018, apenas 39,9% dos matriculados em medicina são negros. A UFF não dispõe de informações sobre a quantidade de alunos pretos ou pardos presentes no curso.


Para realizar a denúncia de fraude, é preciso que a queixa seja, formalmente, realizada nas ouvidorias das Universidades, para que os inquéritos sejam abertos e comissões e bancas responsáveis possam prosseguir com a averiguação. Na maioria dos casos, ela consiste na convocação do aluno para apresentação da comissão de heteroidentificação.



A história da Lei de Cotas no Brasil


O sistema de cotas raciais foi implementado pela primeira vez no Brasil em 2003 pela Universidade Federal de Brasília (UnB). O objetivo da ação afirmativa era equiparar a possibilidade de ingresso da população negra nas instituições de ensino superior do país, visto que, na época, as universidades eram ocupadas majoritariamente por brancos (72,9%), segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).


Especialmente após a iniciativa da UnB, políticas públicas em torno do direito universal de acesso à educação igualitária e de qualidade começaram a ser reivindicados por alunos e militantes do movimento negro. A consolidação das cotas aconteceu em agosto de 2012, a partir da lei nº 12.711, a chamada Lei de Cotas. A partir desta data, todas as instituições de ensino superior federais do país tiveram que reservar obrigatoriamente parte de suas vagas para alunos oriundos de escolas públicas e de baixa renda, bem como para pretos, pardos e indígenas. A reserva começou em 12,5% e chegou a 50% em 2016.


Analisada historicamente, a Lei de Cotas étnico-raciais foi instituída a fim de corrigir as disparidades sociais e promover a igualdade de oportunidades entre brancos e negros. De acordo com Denise Góes, a abolição da escravatura em 1888 não promoveu a inclusão dos libertos à sociedade e criou um abismo do qual até hoje a população negra luta para encurtar.


A diferença está explícita desde a primeira experiência na UnB, em 2003, e vem se consolidando ao longo das experiências vividas. As cotas trouxeram a inclusão, trouxeram a possibilidade de ascensão que sempre foi negada à população negra, que também sempre foi alijada dentro da estrutura social brasileira disse.


Além disso, especialistas e pesquisadores acreditam que a iniciativa é importante para naturalizar um espaço que deve ser, por direito, ocupado pela população negra e retirar o caráter elitista, branco e conservador das universidades públicas. Na visão de Rolf Malungo, antropólogo, professor e coordenador da Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade da Universidade Federal Fluminense (UFF), podemos dizer de imediato que as cotas são um ato de justiça social, pois o Estado Brasileiro e a sociedade como um todo, têm uma dívida com os descendentes de africanos. Muitos não a reconhecem, mas tal ação afirmativa é apenas uma forma tardia de pagar parte dela.


— As cotas trouxeram a inclusão, trouxeram a possibilidade de ascensão que sempre foi negada à população negra — Denise Góes, assistente social e militante do MNU

Atualmente, as ofertas de vagas restritas por critérios étnico-raciais encaixam-se na reserva de 50% das vagas totais oferecidas pelas universidades e por cada curso, de acordo com o edital do vestibular ou do Sisu. Para calcular o número de vagas destinadas a pretos, pardos e indígenas, utilizam-se dados dos censos demográficos do ano anterior, disponibilizados pelo IBGE.



A importância das cotas em números


Segundo a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua do IBGE, 56,10% da população se autodeclaram negras no Brasil, isto é, pretos ou pardos. No entanto, o patamar de representatividade desta parcela da sociedade nas instituições de ensino, mercado de trabalho e no direito à proteção social ainda não lhes são garantidos proporcionalmente.


Em dados de 2018 divulgados pelo IBGE, nos quais foram analisados a restrição à educação por sexo e raça, homens e mulheres negros representavam 33,1% e 30,8%, respectivamente, enquanto homens e mulheres brancos eram 23,8% e 23,5%. Já quando analisado a restrição do direito à proteção social, homens e mulheres negros somavam 40,3%, contra apenas 17% de homens e mulheres brancos entrevistados.


No ensino superior e mercado de trabalho os dados não são diferentes. Ainda segundo informações do instituto, apenas 29,1% dos pretos e pardos oriundos de escola pública ingressaram no ensino superior, enquanto para os brancos, este número sobe para 42,7%. Tais discrepâncias influenciam diretamente nas oportunidades socioeconômicas de cada grupo social, pois mesmo com graduação, os negros compõem 7,4% dos desocupados, contra 6,3% da população branca. Além disso, o desemprego faz com que a maioria das atividades informais sejam ocupadas pelos mais desfavorecidos. Nos serviços domésticos, por exemplo, negros somam 65,9%.



De acordo com Góes, a escolaridade está diretamente relacionada ao desenvolvimento social da pessoa negra. Devido à falta de políticas públicas que possibilitem o acesso a um ensino de qualidade, moradia e empregos dignos, tal grupo social permanece sendo sub-representado em espaços majoritariamente ocupados por brancos.


Temos que expandir o debate sobre a desigualdade racial na mídia em geral, no sentido da representatividade. O racismo estrutural e o institucional emperram que tenhamos a representação populacional aplicada nos vários setores da sociedade. A formação de nossa população será determinante para que possamos ter acesso ao trabalho digno e bem remunerado. No serviço público essas diferenças salariais não se perpetuam, mas em contrapartida não estamos nos cargos de poder relatou.


Para o estudante de medicina Dagles Sartori, o sistema de cotas foi um fator primordial para que pudesse ingressar em um dos cursos mais concorridos nas universidades públicas brasileiras. Com a nota de corte acima de 800 pontos em 2016, ano em que ingressou na faculdade, ele acredita que, sem o cursinho pré-vestibular com bolsa de 50% para alunos de baixa renda e sem as cotas, o sonho de ingressar no curso de medicina não teria sido realizado.


Ao olhar sobre o aspecto da minha realidade socioeconômica, tentar muitos anos de vestibular não é uma opção. Passei por diversos empecilhos para conseguir chegar aqui e a cota me veio como uma possibilidade de adentrar no ensino superior e tentar mudar a minha realidade. Realidade, inclusive, social, visto que seria o primeiro negro da minha família a entrar numa universidade pública. Se não fossem as cotas, eu não teria a possibilidade de entrar na faculdade porque não poderia tentar o vestibular por mais vezes e teria que entrar no mercado de trabalho o mais rápido possível.


— Se não fossem as cotas, eu não teria a possibilidade de entrar na faculdade — Dagles

Em vista da sua realidade socioeconômica, Dagles acrescenta que sem as bolsas e auxílios de assistência estudantil oferecidos pela universidade, também não seria possível permanecer e arcar com as despesas da faculdade.


Eu pensava que enfrentaria problemas quando entrasse na faculdade por ser um curso bem elitista realmente. O que me gerava mais medo era o fato de não ter acesso às informações, conhecimentos. Porém, quando entrei, vendo de perto como funcionava, vi que tinha acesso a conteúdo pela internet e pelas bibliotecas da faculdade. Além disso, tinha receios quanto à permanência, mas, graças às bolsas oferecidas pela UFF, eu consigo me manter.


De acordo com Rolf Malungo, para além das cotas, políticas públicas de assistência estudantil precisam ser ampliadas nas universidades, pois após serem aprovados, os estudantes precisam de auxílio para sua manutenção no curso, porque têm gastos com as passagens, livros, xerox, entre outras coisas pontua Malungo.


Desde que a Lei de Cotas entrou em vigência, o número de estudantes pretos e pardos nas universidades públicas aumentou em 158%. De acordo com o Censo da Educação Superior realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), em 2012, havia 324.849 alunos negros matriculados, contra 465.865 alunos autodeclarados brancos. Já em 2018, a quantidade de discentes negros subiu para 840.360, enquanto os brancos representavam 835.915.



Negros são maioria nas universidades


Em novembro de 2019, o IBGE divulgou dados da pesquisa "Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil", com base na Pnad Contínua, no qual apontava que o número de estudantes negros nas universidades públicas brasileiras passou, pela primeira vez, o de brancos. Segundo os números, estudantes autodeclarados pretos e pardos ocupam 50,3% das vagas em instituições de ensino superior federais, estaduais e/ou municipais, enquanto brancos somam 48,2%.


De acordo com Malungo, o avanço dessa parcela da população tem relação direta com o sistema de cotas e deve ser comemorado.


Estes números são uma vitória do Movimento Negro, pois isso mostra que a consciência racial aumentou no Brasil. Se algum tempo atrás, as pessoas tinham dificuldades em dizer qual a sua cor, hoje isso cada vez mais deixa de ser uma questão. Independente das discussões se o correto é ser “preto” ou “negro”, a consciência racial está crescendo cada vez mais. Com as cotas, o perfil dos corpos discente e docente se tornaram mais próximos, apenas mais próximo, e não universidades públicas apenas para uma elite brancas e de classe média.


No entanto, apesar de serem maioria, os pretos e pardos permanecem sub-representados, por somarem 56,10% da população brasileira. Ainda de acordo com dados do IBGE, em 2018, apenas 35,4% dos negros com ensino médio completo chegavam ao ensino superior (público ou privado). Entre os brancos, esse número era de 53,2%. Além disso, entre os concluintes do ensino médio os negros representavam 61,8%, menor do que a taxa da população branca que é 76,8%.


Dentro da taxa dos que abandonam a escola por terem que trabalhar ou procurar trabalho, proporção de jovens negros de 18 a 24 anos é 61,8%. Para Góes, apesar da maioria de pretos e pardos no ensino superior, tal informação não pode servir para mascarar e apagar todas as lutas por igualdade de direitos.



Existe uma intencionalidade de abafar nossa luta e o aprofundamento das políticas públicas, então dados como esses jogados na sociedade produzem a constatação de que a luta chegou ao fim. Durante muito tempo convivemos com a negação do racismo e com o mito da democracia racial, que preconizava que éramos todos iguais e da meritocracia, ou seja, que através do esforço, você conseguiria chegar onde quisesse. Precisou-se de muitos debates entre movimentos sociais para que a população negra entendesse que todo este processo faz parte da dívida que o Estado Brasileiro tem com os que foram escravizadas neste país. E esse entendimento se faz presente hoje, a população negra entendeu essa manobra e hoje faz valer seu direito, conquistado com muita luta.


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