Durante pandemia, policiais matam uma pessoa a cada 4 horas no Rio de Janeiro
- commovimentouff
- 2 de jun. de 2020
- 6 min de leitura
Atualizado: 2 de jun. de 2020
Número de mortes havia diminuído no início do isolamento, quando operações foram reduzidas

Por Thaís Gesteira
Treze pessoas mortas durante uma ação da Polícia Militar (PM), no Complexo do Alemão. João Pedro Matos, de 14 anos, assassinado dentro de casa com tiros nas costas, após invasão da Polícia Federal e Polícia Civil na favela do Salgueiro, em São Gonçalo. Iago Cesar, 21, torturado e morto durante ação da PM em Acari. João Vitor Gomes, 18, morto durante incursão da PM que paralisou doações na Cidade de Deus. Rodrigo Cerqueira, 19, assassinado durante ação que interrompeu distribuição de cestas básicas no Morro da Providência. Esses dezessete casos de homicídios, que aconteceram em um intervalo de apenas sete dias em comunidades de diferentes localidades da região metropolitana do Rio, estão unidos por duas variáveis: todos foram decorrentes de violência policial e ocorreram durante o isolamento social provocado pela pandemia de Covid-19. Ou seja, enquanto a sociedade se mobiliza para proteger as vidas dos mais vulneráveis, a polícia – que tem como lema servir e proteger – é responsável pela morte de jovens dentro das favelas.
“Fatos e dados não deixam dúvida: as polícias do Rio de Janeiro se tornaram máquinas de matar, mantendo há anos o vergonhoso lugar de polícia mais violenta do Brasil”, publicou o Observatório de Segurança do Rio de Janeiro após a sucessão de mortes violentas no Estado. “O foco em operações violentas e bélicas, especialmente em um momento em que a pandemia tornou mais agudas as dificuldades das comunidades, é incompatível com o principal papel das forças policiais: garantir a segurança da população”, diz, ainda, o artigo disponível aqui.

Observatório de Segurança analisa mortes em operações durante a pandemia
│ Foto: Observatórios de Segurança
Em março, o Estado do Rio de Janeiro iniciou o isolamento social. Assim, conforme a preocupação com o vírus aumentou – e a Polícia Militar começou a exercer funções como controle de embarque em transporte público – as operações policiais tiveram queda de 74% e, como consequência, o número de mortes causadas pela polícia caiu 60%. O Instituto de Segurança Pública (ISP) analisou dois períodos naquele mês: entre os dias 1º e 15, antes do governador Wilson Witzel (PSC) decretar o estado de emergência, e entre os dias 16 e 30, já com o isolamento e ações preventivas de enfrentamento ao coronavírus. Nos intervalos observados, as operações caíram de 139 na primeira quinzena para 56 na segunda metade do mês. Somando o mês inteiro, foram 15 mortes: 21 a menos do que o mesmo período no ano passado.

Policial atua no enfrentamento ao coronavírus no transporte público │ Foto: Polícia Militar do Rio
Já em abril, entretanto, as ocorrências explodiram: foram 177 mortes por intervenção policial – uma morte a cada quatro horas, segundo o ISP. Estes dados refletem um aumento de 43% em relação ao mesmo período em 2019. Abril de 2020 entra para as estatísticas de óbitos não somente por causa do coronavírus, mas, também, por ser o segundo mês com mais mortes decorrentes de ações policiais desde 1998, quando teve início a série histórica do governo do estado.


“Em meio à pandemia, uma operação policial na favela. Aqui mesmo onde falta água e a fome se faz presente... Vejam, essa foi a principal forma que o Estado dialogou com o nosso momento atual. A falsa ideia de guerra contra as drogas, que não transforma realidades de forma positiva e aumenta a violência. Lastimável. Se não morrer de vírus ou de fome, te matarão com tiros de fuzil, em nome de uma Segurança Pública que não inclui nosso povo", escreveu, nas redes sociais, o ativista Raull Santiago.
"O recado é claro: para o estado, as vidas em favelas não importam. O Rio não tem outra política de segurança que não seja operação policial. Não basta o morador de favela ter que sobreviver em condições precárias, ainda tem que sobreviver a tiroteios”, indigna-se a estudante Giovana Moreira*, moradora do Salgueiro, em São Gonçalo.
*Nome alterado a fim de proteger a entrevistada
Aumento de operações militares vai na contramão de crimes civis
Enquanto as mortes por ações policiais representaram 35% das mortes violentas em abril, crimes como homicídios e roubos tiveram queda* em abril, mês em que a população fluminense esteve em isolamento social. Confira:

De acordo com o ISP, os indicadores tiveram queda por causa do distanciamento social, que ajuda na redução da criminalidade, mas também por causa das subnotificações decorrentes da diminuição dos Registros de Ocorrências.
Máquina de matar
O uso da força letal pela polícia brasileira, de acordo com o código penal militar, só é legítimo “quando todos os outros recursos já tiverem sidos experimentados”. No entanto, uma análise feita pelo jornal estadunidense New York Times – publicada em 18 de maio, comprova o que há muito os órgãos defensores de direitos humanos denunciam: os agentes públicos costumam atirar sem restrições, protegidos pelos superiores e por líderes políticos, confiantes de que, mesmo que sejam investigados por assassinatos ilegais, não serão impedidos de voltar às ruas. Em 48 mortes em decorrência de violência policial analisadas pelo veículo, metade foram através de tiros pelas costas – segundo autópsias. Em 20 destes casos, os mortos foram baleados ao menos três vezes.
Voluntários se tornam alvos
A fim de amenizar o impacto social do Covid-19 nas comunidades, muitas ONGs e instituições organizam doações de mantimentos, materiais de limpeza e itens de higiene pessoal para pessoas que perderam suas fontes de renda e que não tiveram acesso ao auxílio emergencial do governo federal. Muitos destes trabalhos voluntários, no entanto, foram interrompidos pela violência urbana, de acordo com diversos relatos de ONGs.

Frente CDD distribui cestas básicas para famílias da Cidade de Deus │ Foto: Instagram Frente CDD
No final de abril, voluntários do Gabinete de Crise do Alemão - composto pelos coletivos Papo Reto, Voz das Comunidades e Mulheres do Alemão - foram obrigados a interromper a distribuição de alimentos no Complexo do Alemão.
Em maio, duas ações voluntárias foram interrompidas, na mesma semana, após dois jovens negros serem assassinados pela polícia. No dia 20, João Vitor Gomes da Rocha foi atingido enquanto acontecia a entrega de 200 cestas básicas na Cidade de Deus. Durante a operação, os voluntários tiveram que entrar na casa de moradores para sair do alvo de tiroteios.
Em um vídeo que circulou nas redes sociais logo após a operação, um membro do coletivo Frente CDD relatou o ocorrido, de dentro da casa de um morador, na localidade onde as cestas estavam sendo entregues.
“E aí, seu governador, tudo bem com você? Estamos dentro da casa de moradores, com nossa roupa infectada porque a bala está comendo lá fora e estamos aqui, encurralados, com crianças chorando e com medo. Estávamos levando cesta básica para as pessoas para fazer o que o Estado não faz, porque o Estado só leva bala para dentro da favela. Muito obrigado, seu governador”, denunciou.
No dia seguinte, mais uma operação policial interrompeu a distribuição de cestas básicas. Desta vez no Morro da Providência, Rodrigo Cerqueira foi vítima de homicídio enquanto trabalhava como ambulante e, assim como ocorreu na Cidade de Deus, voluntários tiveram que entrar na casa de moradores para sair do alvo de tiroteios.
O que dizem as autoridades
O Governador Wilson Witzel, após estes casos, reuniu-se com os secretários de polícia civil e militar e recomendou que evitassem operações enquanto grupos promovem ações e serviços humanitários.
A Polícia Militar afirma que as operações mensais se mantiveram no mesmo patamar que o primeiro quadrimestre deste ano e que as atividades de enfrentamento ao crime organizado não sofreram alterações com a pandemia.
Ato: Vidas Negras Importam

Raull Santiago protesta com cartazes contra ações policiais │ Foto: Jota Marques
No domingo, 31 de maio, ativistas organizaram o protesto “Vidas Negras Importam”, em frente ao Palácio Guanabara, sede do Governo do Estado do Rio de Janeiro, em Laranjeiras, Zona Sul do Rio. O ato pediu o fim das operações violentas nas favelas e utilizou como símbolo uma foto do menino João Pedro, morto dentro de casa em São Gonçalo. A manifestação aconteceu em conjunto a uma série de protestos nos Estados Unidos, após um homem negro ter sido assassinado durante uma abordagem policial violenta.
“Infelizmente, em meio a uma pandemia global, a violência policial continua assassinando nosso povo. Se não morremos com o vírus, a violência da polícia nos mata. SÓ QUE NÃO MAIS! Somente em abril de 2020, a polícia do Rio de Janeiro matou 177 pessoas negras, periféricas e da favela. Isso foi durante uma pandemia global. É inaceitável o que está acontecendo aqui. É por isso que vamos à rua. Precisamos lutar contra o racismo, a violência policial e o genocídio do nosso povo!”, publicou Raull Santiago em suas redes sociais.
O protesto aconteceu um dia após mais um jovem negro ser vítima da polícia militar no Rio de Janeiro. Matheus Oliveira, 23, morreu com um tiro na cabeça perto de um dos acessos ao Morro do Borel, na Tijuca, Zona Norte do Rio. De acordo com um amigo que estava com Matheus no momento dos disparos, ambos estavam de moto voltando pra casa quando policiais que estavam na rua, de preto, se assustaram e atiraram.
Devido à pandemia, os manifestantes usaram máscaras e outros equipamentos de proteção individual
Comments