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Plataformas: empresas de mídia ou empresas de tecnologia?

Dossiê Novas Mídias

Por Gilberto Scofield Júnior

Um dos pontos centrais de qualquer discussão a respeito da regulamentação das plataformas de redes sociais é a definição destas empresas como novas mídias. Ainda que as plataformas se considerem empresas de tecnologia - tanto que vários teóricos abraçam o grande conceito das Big Techs (Morozov, 2018) -, há diversas características que as tornam bem mais do que isso. No artigo "Why media companies insist they are not media companies, why they are wrong, and why it matters" ( "Por que empresas de mídia insistem que não são empresas de mídia, Crédito: imagem feita com IA em Microsoft Designer por que estão erradas e por que isso importa"), publicado originalmente na First Monday (2017) e traduzido para a Parágrafo, os pesquisadores Philip Napoli, da Universidade Duke, e Robyn Caplan, da Universidade Rutgers, defendem que as plataformas são empresas de mídia. Os dois levam em consideração não apenas questões de funcionalidade e estruturalismo das plataformas - são veículos que transmitem conteúdos em rede para amplo público e se remuneram de publicidade -, mas também as  implicações  políticas,  legais  e  regulatórias  associadas  à concordância (ou à recusa) com essa classificação. 

A ideia de redes sociais como mídia não é um debate recente. Autora de "Redes Sociais na Internet", a pesquisadora Raquel Recuero (2009) já cruzava - antes do boom das redes sociais no Brasil - as práticas jornalísticas com os processos de difusão de informação nas redes e até que ponto as duas ações se confundiam. Recuero se utilizava do conceito de espaços públicos mediados (Boyd; Ellison, 2007) das redes para destacar sua crescente influência nas relações e conexões entre pessoas e a consequente circulação e produção de informações, atividades sempre ligadas a um capital social para além das características clássicas definidas por Bourdieu (2023). Trata-se de um capital que, para muitos, está na lógica cognitiva e psicossocial das bolhas, câmaras de eco e, mais recentemente, da polarização social que, ao menos no Brasil, já transbordou do campo político para o cotidiano (Nunes; Traumann, 2023).

Numa era ainda dominada por Orkut, MySpace e blogs, Recuero já destacava o poder de propagação de informações em rede e os fenômenos da filtragem (gatekeeping), do compartilhamento e da reverberação dos conteúdos neste ecossistema, características que sempre estiveram associadas ao jornalismo e suas consequências em  mediação e midiatização, porém turbinadas. A pesquisadora destacou, na época, que as redes funcionam mais como complementares ao fazer jornalístico ao "apontarem a relevância de notícias, ampliando seu alcance, comentando-as e mesmo apontando outras fontes". Não que já não pudessem integrar ações participativas de jornalismo, mas aquele simplesmente não era o objetivo das redes sociais, um princípio que se mantém mais ou menos de pé.

Mas o cenário tecnológico mudou, a própria imprensa fez (ou ainda faz) a transição para o digital e novos conceitos de Mídia e Jornalismo Online emergiram (Hess, 2014) (Deuze; Witschge, 2017), com considerações que constatam uma profunda ligação entre o fazer jornalístico e as possibilidades digitais. No entanto, com a popularização das redes sociais num cenário de pós-verdade e desinformação (D'ancona, 2018) (Da Empoli, 2019) (Charaudeau, 2022), a subsunção da economia da informação (Castells, 2009) (Levy, 2014 ) (Carr, 2011) pela economia da datificação e plataformização (Srnicek, 2016) (Zuboff, 2021) e com os recursos da publicidade e o consumo de conteúdo noticioso migrando para os conglomerados de redes sociais e mecanismos de busca (Newman, N. et al., 2023), empresas como Meta, Google, TikTok, X (e seus substitutos Threads, Bluesky, Mastodon, etc.), entre outras, estão assumindo cada vez mais funções de meios de comunicação tradicionais, o que passou a levantar dúvidas, inclusive, sobre a sobrevivência financeira do jornalismo no futuro (Bell E.J. et al).

Num embate que adquire contornos de conflitos não apenas comunicacionais ou jornalísticos, mas, principalmente, sociais, políticos e econômicos, o debate ganhou volume e amplitude. No Brasil, buscou-se regulamentar as plataformas de mídias sociais através do PL 2630/20 (Brasil, 2020), já devidamente engavetado por lobby das plataformas e interesses individuais de parlamentares (UOL Notícias, 2023). Seguindo a lógica de que as plataformas precisam se responsabilizar por aquilo que publicam e, desta forma, retirar qualquer conteúdo do ar quando ele ofende a lei ou ameaça terceiros pela propagação do ódio e da desinformação, atores diversos passaram a defender a definição das plataformas como mídia. A argumentação segue os interesses de cada um envolvido com o tema. O ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre Moraes - responsável pelo julgamento das consequências jurídicas da tentativa de golpe engendrada em 8 de janeiro de 2023 (Assis, 2024) - defende o conceito a partir da análise da desinformação sobre o processo eleitoral que circulou nas plataformas durante a campanha de 2022 e culminou na tentativa de golpe em janeiro do ano seguinte.

Ainda em 2019, de olho na drenagem dos recursos publicitários que migraram para as plataformas, os veículos de imprensa tradicionais, reunidos no Conselho Executivo das Normas Padrão (Cenp) - órgão que engloba os sindicatos patronais da Grande Imprensa - publicou uma resolução reconhecendo como “veículos de divulgação ou comunicação” as seguintes categorias de plataformas: internet-busca, internet-social, internet-vídeo, internet-áudio e internet-display, remetendo a sites e apps como Google, Facebook, YouTube, Instagram e afins (Rosa; Machado, 2019). O objetivo era criar um fiapo de arcabouço jurídico que obrigasse as plataformas a divulgarem suas tabelas de preços e assim tentar enquadrar as agências de publicidade que trabalham com governos (de onde vem boa parte da verba dos anúncios no país). Pela regulamentação atual, a agência de publicidade deve ser remunerada de acordo com as normas vigentes para empresas de comunicação, que exigem a publicação da tabela de preços das mídias (não publicamente, destaque-se). Como os valores de publicidade on-line variam conforme a demanda (valores das ofertas pelos anúncios com base em métricas), o desejo da imprensa tradicional nunca chegou a virar realidade.  Em fevereiro deste ano, a Secretaria de Comunicação (Secom) da Presidência da República divulgou uma instrução normativa para o segmento das agências que trabalham com a contratação de publicidade online (SECOM, 2024), mas as imposições se limitam à legalidade das empresas e à transparência dos anunciantes.

Por tudo isso, o artigo "Por que empresas de mídia insistem que não são empresas de mídia, por que estão erradas e por que isso importa" ganha relevância. Philip Napoli e Robyn Caplan argumentam que a resistência de plataformas como Google, Facebook e X em serem caracterizadas como empresas de mídia, preferindo ser vistas como empresas de tecnologia, é menos conceitual e mais estratégica. O objetivo, dizem eles, é muito simples: evitar regulações mais severas e responsabilidades legais típicas do setor de mídia (que no Brasil, nem é regulado, nem auto-regulado, diga-se de passagem). 

Napoli e Caplan observam que as plataformas de mídia social desempenham um papel crescente na distribuição de notícias, mas insistem em se distanciar da identidade de empresas de mídia, mesmo quando influenciam diretamente o ecossistema informativo. As implicações dessa distinção vão além da semântica, uma vez que a classificação precisa dessas plataformas afeta como elas são tratadas por legisladores e tribunais. O artigo analisa ainda os argumentos usados pelas plataformas para justificar essa postura, como a alegação de que "não produzem conteúdo original" e "o foco em equipe de cientistas da computação". Embora as plataformas dependam de algoritmos para curadoria de conteúdo, essa automação não as isenta de responsabilidades editoriais (de conteúdo publicado), e muitas vezes há intervenção humana significativa na seleção de informações (um ponto nada transparente). Sobre conteúdo, o questionamento remete a outro ponto atualíssimo na análise ontológica da comunicação. O que pesa mais na sociedade de rede:  o conteúdo e sua narrativa ou o alcance e engajamento da mensagem na sociedade midiatizada?   

Além disso, a publicidade é uma das fontes principais de receita das plataformas, o que as alinha ao modelo tradicional de mídia, onde o público é "vendido" a anunciantes (hoje, via datificação). Ocorre que nem mesmo os anúncios são analisados neste ecossistema plataformizado. Conteúdos de ódio ou desinformativos impulsionados, desde que rendam muito dinheiro, circulam sem maiores constrangimentos nas plataformas. Outro ponto levantado pelos autores é que a classificação dessas empresas como "tecnológicas" em vez de "midiáticas" permite que escapem de regulações mais rígidas, como obrigações de interesse público e limitações à concentração de propriedade (um aspecto que, no templo da liberdade de expressão conhecido como EUA, é plenamente regulado). O enquadramento como empresas de tecnologia reduz a supervisão governamental, permitindo que essas plataformas dominem mercados sem as mesmas obrigações impostas a mídias tradicionais.

A conclusão é que, à medida que essas empresas evoluem e se integram mais profundamente na produção de conteúdo, a distinção entre mídia e tecnologia se torna cada vez mais complexa e mesmo inevitável. Com isso, os pesquisadores sugerem que o debate regulatório evolua para refletir essa nova realidade híbrida entre tecnologia e mídia, de modo a garantir que as funções cruciais das plataformas no processo democrático e no debate público sejam adequadamente definidas em direitos e responsabilidades. Com a devida penalidade para o não cumprimento das regras, por consequência.


Referências:


ASSIS, M. Alexandre de Moraes cobra união internacional para regulamentar big techs. Valor Econômico. Disponível em: https://valor.globo.com/politica/noticia/2024/05/21/alexandre-de-moraes-cobra-uniao-internacional-para-regulamentar-big-techs.ghtml. Acesso em 02 jun. 2024.


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