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"... É da luz do fogo, que o Cinema se faz." — o incêndio da Cinemateca Brasileira

Atualizado: 24 de ago. de 2021

Entrevista com a Pesquisadora Laura Batitucci sobre o incêndio da Cinemateca Brasileira e perspectivas para o futuro de um país em guerra com o passado.

Foto: Corpo de Bombeiros PMESP

por Renato Tavares Mayr



Há três anos, na noite de domingo, 2 de setembro, um incêndio de proporções colossais destruiu o prédio sede do Museu Nacional do Brasil, mais antiga instituição de ciências e pesquisas do país, fundado em 1818, na Quinta da Boa Vista, Rio de Janeiro. O impacto do desastre foi catastrófico: das cerca de 20 milhões de peças arquivadas, as quais faziam parte de diversas áreas de estudo, apenas 2,7 mil puderam ser recuperadas, aproximadamente. Registros arqueológicos que apresentavam pistas quanto às origens dos povos originários das Américas, sobreviventes de milhares de anos; os últimos registros de línguas indígenas, faladas pelos seus últimos conhecedores, já falecidos.


Enquanto assistimos as imagens dos bombeiros lutando para extinguir as chamas, o país assistiu horrorizado à conclusão de um longo projeto de sucateamento dos órgãos de Pesquisa e Ciências públicos. Vinculado à UFRJ, o Museu Nacional sofria com a falta de verbas e descaso por parte das administrações governamentais, que eram avisadas insistentemente quanto ao perigo real de perdas irreversíveis. Após o desastre, promessas de ações pela proteção do patrimônio histórico brasileiro foram refeitas, como que aos ventos. À sombra das ruínas incendiadas, a fragilidade das instituições que resguardam nossos feitos, nossa história, ficou mais clara do que nunca.


Foi então, após anos de denúncias e protestos, que no dia 30 de julho de 2021, o céu noturno no bairro da Vila Leopoldina, em São Paulo, brilhou com as chamas de um novo incêndio, desta vez em um dos galpões que armazenava parte do acervo da Cinemateca Brasileira.



Foto: Corpo de Bombeiros PMESP

Este último foi o mais recente de cinco incidentes que acometeram a instituição ao longo das décadas (1957, 1969, 1982 e 2016), degradando seu acervo pouco a pouco. De acordo com o Corpo de Bombeiros, o fogo pode ter começado a partir de um curto-circuito durante a manutenção do sistema de ar condicionado. Ao menos duas salas repletas de filmes em película de acetato, extremamente inflamável, e uma terceira com documentos e pesquisas em papel, que ainda aguardavam o processo de digitalização, foram totalmente destruídas. Dentre as possíveis perdas, listadas em um manifesto pelos ex-funcionários da Cinemateca, que conheciam o acervo do armazém na Vila Leopoldina, estão o Arquivo Embrafilme, uma das grandes produtoras e distribuidoras da história do Cinema brasileiro; documentos do arquivo Tempo Glauber, que resguardava a memória de um dos nossos cineastas mais conhecidos e respeitados, Glauber Rocha; o acervo da distribuidora Pandora Filmes, com “matrizes e cópias de cinejornais únicos, trailers, publicidade, filmes documentais, filmes de ficção, metragens, todos potencialmente únicos”.


As imagens são perturbadoras - as perdas, colossais. Mas, enquanto instituições ardem em chamas e órgãos governamentais falham em performar seus deveres, quais são os efeitos de uma situação como esta nos indivíduos que lutaram para fazer do Cinema brasileiro o seu ofício e legado?


Com este intuito, conversamos sobre este caso e seus impactos na cultura do país com Laura Batitucci, Pesquisadora e Preservadora Audiovisual, bacharel em Estudos Literários (Letras - Inglês) pela UFMG e cursando Cinema e Audiovisual na Universidade Federal Fluminense.



Qual é a sua área de atuação no Cinema e quais caminhos te trouxeram até aqui?


Eu sou preservadora audiovisual, ou seja, eu lido com a catalogação, conservação, restauração e exibição de filmes antigos. Cheguei até aqui porque me envolvi, em 2018, com o Laboratório Universitário de Preservação Audiovisual da Universidade Federal Fluminense, o LUPA/UFF. Em 2018, comecei ajudando como voluntária em alguns eventos até que passei a ser bolsista.

No laboratório, trabalhamos na catalogação de todos os filmes feitos por alunos do curso de Cinema da UFF; o Dia do Filme Caseiro, em que exibimos alguns filmes caseiros (em Super8, 8mm, etc); e também o projeto que participei no 4º Festival de Cinema do BRICS, em que fizemos duas exposições de equipamentos cinematográficos antigos. Quando comecei a me envolver com o LUPA, descobri um apreço pela área de preservação audiovisual. É uma tarefa muito bonita de se fazer e muito interessante, vendo a memória da realização cinematográfica desde a época dos filmes mudos.


Qual é a sua relação com a Cinemateca brasileira?


Enquanto cidadã brasileira, minha relação com a Cinemateca é de espectadora e utilizadora de um serviço muito importante de acervo. A Cinemateca Brasileira é o principal centro de guarda da memória audiovisual brasileira, portanto, qualquer cidadão que queira acessá-la, seja só para ver, ou para pesquisar, ou mesmo para usar nas próprias produções, tem que passar por lá.

Enquanto preservadora, minha relação com a Cinemateca é de admiração: foi um lugar que desenvolveu projetos incríveis para reunir os filmes de todo o Brasil, como o Censo Cinematográfico Brasileiro, que aconteceu no início dos anos 2000 e trouxe à tona informações sobre vários dos nossos filmes. Eu gosto muito de pesquisar sobre a história da Cinemateca Brasileira porque ela representa a forma como preservamos, e como não preservamos, filmes no nosso país. Foram 5 incêndios até então e isso demonstra como lidamos com a nossa memória audiovisual.

Eu já estive lá algumas vezes, inclusive. Em 2019, fiz uma tour lá dentro e foi muito empolgante e interessante. Ver de perto como funciona (ou funcionava...) aquele lugar me fez ter certeza de que eu gostaria de trabalhar com preservação. Os vários setores pareciam trabalhar em harmonia e as pessoas que me contaram um pouco dos seus trabalhos pareciam saber da importância do que estavam fazendo: cuidando diretamente das latas, catalogando, preservando a documentação paralela ou até mesmo objetos correlatos, como o vestido que a Norma Bengell usou na estreia de Os Cafajestes (Ruy Guerra, 1962).



O seu parecer sobre os acontecimentos recentes que levaram ao incêndio de parte do acervo da Cinemateca:


O incêndio de 2021 foi consequência direta do abandono que a Cinemateca Brasileira vem sofrendo há alguns anos, desde antes do governo Bolsonaro. A gestão de cultura deste governo é praticamente inexistente e é a principal responsável pelo problema, claro, mas desde o governo Temer há alguns problemas sérios na administração da Cinemateca, como a questão da transferência da gestão para uma O.S. (Organização Social). Esse modelo terceiriza as atividades de preservação para o setor privado e retira do governo a responsabilidade de realmente cuidar da Cinemateca.

As atividades de preservação, principalmente de conservação, deveriam ser administradas por funcionários estáveis, concursados, que pudessem também passar a informação para novos funcionários quando se aposentassem. O modelo de gestão das O.S. faz com que haja uma rotatividade muito grande e isso é ruim para um trabalho que depende da estabilidade do material fílmico, que, se for frequentemente checado e restaurado, pode durar até 200 anos. Então, o incêndio de 2021 é uma das consequências da forma como a Cinemateca tem sido tratada, e também uma consequência da forma como a cultura tem sido tratada como um todo pelo governo Bolsonaro.

O Brasil tem memória?


O Brasil tem memória, mas a trata de maneira desleixada há muito tempo. A verdade é que temos uma mentalidade de que a cultura não é algo que precise de investimento constante, portanto não é algo que deveria participar das prioridades do Estado, o que é uma completa ignorância em relação ao tema. Paulo Emílio Sales Gomes, crítico de cinema e teórico atuante nas décadas de 50, 60, e 70, dizia que, se o país não consegue nem manter a sua Biblioteca Nacional, quem dirá uma Cinemateca. E eu concordo com ele e acredito que isso se aplica até hoje - veja por exemplo a questão do incêndio no Museu Nacional, em 2018. Então, o abandono da Cinemateca é um sintoma, e não o problema em si.

Apesar disso tudo, acho sinceramente que é uma luta que vale a pena ser lutada, mesmo que, eventualmente, sejamos assolados por um certo desespero de estar lutando contra uma corrente de esquecimento. Porque, se você não luta pela memória, você está lutando pelo esquecimento, pelo apagamento de tudo que foi feito pelos outros seres humanos que construíram o pilar de conhecimento sobre o qual nós nos sentamos hoje.

No Brasil, temos essa tendência do improviso, de "ir fazendo", e isso definitivamente não é possível aplicar nas políticas culturais, que têm que ser a longo prazo, têm que ser bem feitas. No caso da preservação audiovisual, então, temos que planejar para muitos anos à frente, coisa de centenas de anos. É preciso que os governantes deem estabilidade aos trabalhadores da cultura para que eles possam planejar essas políticas, e deem também oportunidade àqueles que não têm para que as políticas sejam mais diversas e inclusivas.


 
 
 

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